No coração da Bahia

 

Entre 1996 e 1999, morei por três anos de forma intermitente no Pelourinho, no centro histórico de Salvador da Bahia, com o objetivo de produzir um projeto visual sobre o cotidiano do bairro.

O Pelourinho é considerado um dos mais importantes conjuntos arquitetônicos coloniais da América Latina, tendo sido declarado “patrimônio da humanidade” pela UNESCO em 1985. Apesar disso, o antigo centro residencial das oligarquias baianas sofreu ao longo dos anos um longo e inexorável declínio. Bairro “popular” na década de 50, ele se transforma na década de 70 em uma região considerada “perigosa”, habitada por uma população pobre e marginalizada. Os sobrados de três ou quatro andares são progressivamente subdivididos, abrigando um número crescente de famílias, cada cômodo sendo geralmente ocupado por uma família de quatro a cinco pessoas.

Ao mesmo tempo, a partir da década de 80 o Pelourinho se torna um centro simbólico da cultura afro-brasileira, uma verdadeira ágora onde a juventude negra baiana pode enfim expressar-se e fazer escutar sua voz, assim como o Grupo Olodum, que nasceu no bairro e que reúne todas as semanas centenas de percussionistas e milhares de jovens em seus concertos no Largo do Pelourinho.

No entanto, nem tudo é festa no Pelô. Em 1992, o Estado da Bahia inicia uma operação radical para a reabilitação da área afim de transformá-la em um importante polo turístico. A operação implica a expulsão dos moradores e a requisição das casas. Uma vez restauradas, as casas requisitadas se tornarão restaurantes, galerias de artesanato, ou lojas de roupas e souvenires.

Quando cheguei no bairro em janeiro de 1996, as obras de reabilitação se encontravam na metade do percurso (quatro etapas realizadas em dez planejadas) e a situação era bastante complexa. Meu objetivo não era fazer um documentário sobre tais transformações, mas sim escrever, por meio de imagens, uma crônica sobre a vida cotidiana de um bairro popular brasileiro. Fui então viver na área por um longo período de tempo, para ir ao encontro dos moradores e ver o que mudava e o que se repetia periodicamente ao longo dos dias, semanas ou estações do ano. Defini previamente um perímetro geográfico relativamente pequeno e, dentro deste território, documentei livremente todas as pistas que iam surgindo: festas religiosas e profanas, trabalho, comércio, bares, brincadeiras de crianças, fachadas e interiores das casas, quintais, casas em ruínas, obras de restauração, etc.

O resultado desta experiência foi reunido no CD-ROM Au cœur de Bahia (No coração da Bahia), que ganhou o Grand Prix Möbius América Latina em 1999 e o Prêmio Especial do Júri no Prix Möbius International em 2000.


Lucia Guanaes